Recentemente, um investigador Português formado na Noruega, André Dias, difundiu a sua análise sobre a pandemia de covid-19 através de um artigo de opinião, um vídeo no Youtube e até uma carta aberta ao Presidente da República de Portugal. Visto que a sua análise contém dezenas de erros (matemáticos, estatísticos, de inferência lógica, epidemiologia básica e negacionismo histórico); que falamos dum tema com grande impacto na vida (ou morte) das pessoas; e que a sua opinião começou a ganhar visibilidade; achei que tinha a obrigação moral de escrever uma espécie de “peer review” onde enumero e explico os erros técnicos da sua análise. Não vou fazer comentários às partes onde André Dias dá opiniões políticas, e vou abster-me de dar opiniões minhas sobre a boa ou má gestão da crise em diferentes países. Esta é apenas uma revisão técnica à sua análise, que classifico como péssima e irresponsável. Algumas partes envolvem alguma matemática elementar, mas devem ser acessíveis à maior parte dos leitores.

André Dias tem duas teses principais: 1) as medidas de confinamento não funcionam, sendo o declínio de casos ativos em alguns países, como a China, um declínio natural. 2) não há um aumento muito visível das mortes nos países, e a taxa de mortalidade por covid-19 é muito provavelmente semelhante à gripe comum, ou seja 0.1%.

Há uma série de outras afirmações baseadas em erros técnicos grosseiros, mas deixo-as para o final do artigo, para quem estiver curioso, pois são menos centrais para o argumento.

Afirmação central 1: “fit de curva Gaussiana sugere propagação e declínio natural em Wuhan, China.”

André Dias argumenta que a evolução temporal dos casos ativos em Wuhan, China, são bem modelados por uma distribuição Gaussiana, e que isso é evidência de que a propagação e declínio dos casos, foi “natural”, e não consequência do confinamento extremo feito na região. No seu vídeo, mostra um gráfico, extraído deste blog de uma terceira pessoa, onde o próprio autor adiciona a seguinte nota (em tradução aproximada para Português): “Isenção de responsabilidade: esta é uma abordagem muito grosseira e não deve tirar nenhuma conclusão baseada nela – é apenas para sua diversão na leitura.”.

Tendo ignorado o alerta, o argumento de André Dias é obviamente falso, por uma série de razões matemáticas, estatísticas e de inferência lógica.

A evolução temporal de uma epidemia não é bem modelada por uma curva Normal, pois:

  • A fase ascendente inicial da epidemia descontrolada deve ser uma exponencial simples, exp(x) e não da forma exp(-x^2) como numa curva Normal. Ou seja, num gráfico numa escala logarítmica, na fase descontrolada vê-se um recta (e não uma parábola invertida, como seria o caso de o crescimento ser bem modelado por uma Gaussiana).
  • A fase descendente deve ser mais lenta do que a subida, e não simétrica como numa curva Normal. (ver por exemplo o modelo SIRD)

Mesmo que os dados da evolução temporal de casos ativos em Wuhan fossem fidedignos (o que é improvável) e estes fossem bem modelados por uma curva Gaussiana (o que não é o caso), para provar que era um declínio natural e não consequência do confinamento extremo que implementaram, era ainda preciso:

  1. demonstrar que a curva de declínio pelo factor alternativo (confinamento) teria uma forma esperada diferente;
  2. mostrar que a percentagem de infectados na população tivesse atingido valores tão elevados, que se desse uma saturação (o que não ocorreu, pois segundo os dados de Wuhan, nos quais André Dias confia para tirar conclusões, houve uma percentagem pequena de infectados), ou que houvesse outro factor de eliminação natural do contágio, como a teoria da radiação solar na Primavera (que mesmo que fosse verdade, não se aplicaria ao caso Chinês pois o declínio começou em inícios de Fevereiro)

Por outro lado, o facto de o vírus não se ter propagado significativamente em outras regiões da China (mas propagou-se imenso para outros países) demonstra inequivocamente que foi efeito do “lockdown” rígido na região e monitorização no resto da China.

Se ainda restassem dúvidas, uma interpretação “first principles” de virologia indicaria o mesmo. Sabemos com muito detalhe o que são coronavírus (ao ponto de sequenciar o seu código genético, medir a sua estrutura tri-dimensional, etc.) e sabemos como se propagam. Portanto o conjunto de medidas mecânicas (quarentena, distanciamento, acessórios de proteção) e químicas (lavagem de mãos e desinfecção de superfícies) irão obviamente contribuir, em diferentes graus, para diminuir o contágio. Mesmo há mais de 150 anos, antes de sabermos que vírus e bactérias existiam, já havia evidência de que o isolamento de doentes e melhor higiene pública contribuíam para conter epidemias. Hoje em dia, ninguém na comunidade médica e científica tem dúvidas em relação a isso, e daí as recomendações terem sido tão claras e unânimes desde o início (com a exceção das máscaras, que devido a problemas de disponibilidade e riscos de uso indevido, tiveram uma adoção mais lenta e debatida)

Outra nota:

  • É falso dizer que a curva Gaussiana é frequentemente introduzida em cursos de Estatística dando o exemplo da progressão temporal de uma epidemia. A curva Gaussiana faz sentido para descrever (aproximadamente) a distribuição de variáveis aleatórias como a altura de pessoas num país (para uma certa idade e sexo), que devido a serem influenciados por um grande número de factores genéticos e do ambiente, e pelo Teorema do Limite Central, tendem a seguir essa distribuição. Se alguém usa o exemplo da progressão temporal duma epidemia, num curso introdutório de matemática, seria para descrever o que é uma função exponencial simples, onde no expoente temos a variável x, e não algo da forma -x², como é o caso de uma Gaussiana.

Afirmação central 2a: “os dados indicam que não há aumento visível no número de mortes”

Até as fontes de dados apontadas pelo autor, já contrariam esta afirmação. No Euromomo pode ver-se um pico fora do normal para a média da Europa, causado pelo covid-19, (mesmo tendo sido atenuado por isolamento social forte):

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O site Euromomo mostra até outra visualização dos dados, usando o Z-score (que mede quão anómala a quantidade de mortes é em relação ao número de mortes médio esperado para essa altura do ano):

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Note-se que o excesso de mortes em relação aos valores esperados, embora não possa ser diretamente atribuído à epidemia covid-19, parece ser a única causa plausível, pois as datas dos picos por país coincidem com a progressão da epidemia em cada país. Em teoria as mortes por covid-19 até podiam ser mais do que as detectadas pelo excesso de mortes, pois o confinamento deve ter diminuído significativamente outras mortes como os acidentes de carro e as mortes por gripe comum (que também se transmite menos com o confinamento). No entanto, poderia também acontecer um efeito contrário se tiverem aumentado o número de mortes por outras causas agravadas pelo confinamento (como mais problemas cardiovasculares, dificuldade de acesso a cirurgias, ou suicídios). É difícil saber se estes efeitos de segundo grau nas outras causas de mortalidade, se anulam, ou se é ligeiramente positivo ou negativo, mas é extremamente provável que a grande maioria do efeito no excesso de mortes seja devido à progressão da epidemia de covid-19. Há até um artigo recente no Economist a analisar esta situação em mais detalhe.

Mesmo na altura em que André Dias escreveu o artigo (antes dos novos dados no Euromomo), era evidente que a sua análise estava errada, pois:

  1. Não fazia sentido, nessa altura, olhar para o gráfico da Europa toda, pois o contágio durante uma epidemia não é uniforme e a Europa tem mais de 400 milhões de habitantes, com muitas zonas pouco afetadas, portanto os picos locais não iriam ser facilmente detectados numa média global.
  2. Não fazia sentido olhar para o gráfico de Portugal, porque foi um dos sítios onde as coisas correram bem e o confinamento diminuiu o contágio.
  3. Fazia sentido sim, olhar para os sítios mais afetados no mundo até à altura, como a Lombardia e o estado de Nova Iorque, onde já havia evidência clara de um excesso de mortalidade enorme.

É demagógico olhar para dados com a intervenção de distanciamento social e usar isso como evidência de que a epidemia é pouco letal. A única prova para baixa mortalidade, seria se os dados nos sítios mais afetados tivessem baixa mortalidade, o que não aconteceu.

Afirmação 2b: “a taxa de mortalidade é semelhante à da gripe comum, cerca de 0.1%”

André Dias tem razão em dizer que é difícil estimar com precisão a taxa de mortalidade durante o evoluir de uma epidemia, e em algumas fases tende a ser sobre-estimada. No entanto, isso não implica que as estimativas finais convirjam para um número igual ao da gripe comum. Se convergirem para um valor entre 0.5% e 1.0% ainda é 5 a 10 vezes superior.

Mas comecemos por explicar porque é tão difícil estimar esta taxa de mortalidade, cuja definição é o simples rácio: “número de mortes” / “número de infectados”. (Nota: na verdade os epidemiologistas distinguem entre “Case Fatality Rate” e “Infection Fatality Rate”, mas assumamos aqui que o que queremos estimar é a “Infection Fatality Rate”, que captaria melhor a noção de “se todos formos infectados, que fração morre?”).

Dificuldades:

  1. O numerador (número de mortes) é talvez o mais fácil de estimar, pois nos países desenvolvidos contam-se e registam-se as mortes com bastante precisão. No entanto a atribuição de causa de morte é mais complicada. Há países que só contam as mortes hospitalares (e daqueles que testaram positivo), outros contam mortes em casas e lares, e com “morte provável” por covid-19, com base nos sintomas e outros indicadores (como proximidade a outros casos confirmados). Outros ainda, têm critérios diferentes para a atribuição de mortes quando o paciente sofre de várias doenças.
  2. O denominador, é muito difícil de estimar, sobretudo pela falta de capacidade de teste, e pela prevalência desconhecida dos casos assintomáticos. Quanto menos testes um país tiver capacidade de fazer, em princípio mais subestimado está este factor. O que neste caso, dá origem a uma sobre-estimação da taxa de mortalidade.
  3. Existe um desfasamento temporal entre o numerador (mortes) e o denominador (infectados). Este fator é importantíssimo, pode ser enorme, e leva a uma subestimação da mortalidade, sobretudo na fase de propagação descontrolada. Para perceber porquê, pense na fase inicial: podem passar-se 2-3 semanas em que o denominador está a aumentar exponencialmente, e ainda há zero mortes. Nessa fase, o rácio daria 0. Quando a epidemia progride um pouco mais, o rácio tem tendência a aumentar muito, pois começa a haver mortes contabilizadas, mas a capacidade de teste tende a aumentar mais lentamente do que a progressão da epidemia (aconteceu em quase todos os países no início, onde a capacidade de teste talvez tenha aumentado linearmente, e o número de infectados crescia exponencialmente). Isso explica porque este rácio para países como a Itália tenha ultrapassado os 13%. Não por ser uma boa estimativa da taxa de mortalidade final, mas sim porque o número de infectados estava muito subestimado. Para fazer este rácio, diariamente, durante a epidemia, e evitar enviesamentos, seria preciso tentar corrigir o desfasamento temporal entre o numerador e denominador. Mas isso é complicado, porque introduz uma terceira variável, o tempo médio entre infecção e morte, que também teria de ser estimado pelos dados. Esse desfasamento médio, embora possa ser estimado (talvez seja de 2-3 semanas), descreve uma variável aleatória com uma distribuição com muita variância (ou seja, há gente que morre muito rapidamente depois da infeção, e outros, que como no caso do famoso escritor, Luis Sepúlveda, que visitou Portugal, podem morrer 6 ou 7 semanas mais tarde). Portanto, não é fácil. Para complicar as coisas, como veremos mais tarde no caso de Singapura e Qatar, quando se dá uma segunda fase de contágio maior, a dinâmica de enviesamento neste rácio altera-se de novo.

Para além destas dificuldades estatísticas, na verdade não há um só vírus, há muitas estirpes do vírus, sempre a evoluir devido a mutações e em quantidade cada vez maior, com o aumento do número portadores. Algumas destas estirpes podem ser mais ou menos letais (e portanto, o princípio de precaução aplica-se também para a possibilidade de uma nova estirpe mais letal surgir!). Para além disso, a taxa de mortalidade do vírus depende de muitas variáveis ambientais, como: a demografia e estrutura etária do país, prevalência de outros problemas de saúde (obesidade, diabetes, asma, etc.), a qualidade do sistema de saúde, etc. Portanto é muito simplista falar num valor de taxa de mortalidade no global. Para determinar políticas públicas, é por vezes mais útil perceber qual é a taxa de mortalidade condicionada em algumas variáveis (ex: idade, disponibilidade de tratamento médico).

Dando crédito a André Dias numa coisa: a OMS e a comunicação social, deviam realmente divulgar os dados com mais cuidado e explicar o grau de incerteza enorme nas estimativas da taxa de mortalidade. No entanto, num combate a uma pandemia faz sentido assumir o pior caso, e não o caso menos grave, ou mesmo o caso mais provável, pois os custos de não reagir suficientemente rápido, são muito mais elevados do que reagir de forma um pouco exagerada.

Estamos agora prontos para analisar a questão central: será que como André Dias diz (e um punhado de outros cientistas), podemos estar altamente confiantes de que a taxa de mortalidade por covid-19 será parecida à da gripe comum, ou seja, cerca de 0.1%?

A resposta é: não! Com os dados mais recentes, é quase irrefutável estatisticamente que, pelo menos para certas estirpes e certas zonas do mundo a taxa de mortalidade terá de estar situada entre 0.5% e 1.0%. Notem, que deixo em aberto a possibilidade de que para certas estirpes e países possa ser um pouco mais baixa (talvez entre 0.2% e 0.5%), mas mesmo assim haveria uma diferença estatística clara em relação à gripe comum, e pelo facto de o vírus ser altamente contagioso e não haver imunidade nenhuma nas populações, deixando progredir a epidemia de forma descontrolada, teríamos facilmente picos semanais onde a mortalidade seria 5 a 20 vezes superior ao esperado, o que por si só justificaria uma estratégia cautelosa de “flatten the curve”, pois se o sistema de saúde saturar, a taxa de mortalidade entre os infectados aumentaria “artificialmente” pela inexistência de tratamento de doentes que poderiam ter sido salvos.

Em que me baseio para dizer que não podemos excluir que a taxa de mortalidade por covid-19, possa estar no intervalo 0.5% a 1.0%? O estado de Nova Iorque.

O estado de Nova Iorque reúne agora talvez as melhores condições (dentro do possível) para criar um estimador com pouco viés e variância reduzida (o ideal se medirmos a qualidade de um estimador pelo seu “Mean Squared Error”):

  1. Tem uma população de quase 20 milhões de pessoas, e é provavelmente uma das zonas com maiores taxas de infeção no mundo (grande amostra reduz a variância na contagem dos mortos)
  2. Há boas estimativas para o número total de mortes, incluindo para mortes prováveis em casa e em lares (que reduz o viés no caso de se contar só mortes hospitalares)
  3. Já foi realizado um teste serológico com amostra aleatória de 3000 pessoas, para identificar a percentagem da população que esteve exposta ao vírus no passado, e desenvolveu anticorpos. Isto reduz enormemente o viés em relação ao número real de infectados (pois quando são estimados pelos testes de despiste, de deteção de infeção virológica, o número real está muito subestimado). O facto de a amostra ser aleatória (dentro do possível) também reduz o viés pelo facto de não se testar preferencialmente pessoas mais provavelmente infectadas. O facto de a amostra ser relativamente grande, reduz a variância do estimador.

Quais foram as conclusões no estado de Nova Iorque no dia 23 de Abril?

Cerca de 13.9% das pessoas estarão infectadas, e dado que cerca de 0.11% do total da população do estado de NY já tinha morrido até essa data, a estimativa básica por extrapolação para a população total, seria de uma taxa de mortalidade a rondar os 0.78%. (fonte: ver comentários detalhados no dia 23 de Abril no site worldometers, e este artigo)

Apesar de esta ser uma das estimativas da taxa de mortalidade mais estatisticamente fiável, note-se que há uma série de fatores que ainda são incertos, e que a poderiam fazer aumentar ou diminuir a estimativa:

  1. As mortes relativas ao grupo de 13.9% infectados podem ainda não estar todas contadas — pois pode ainda haver casos críticos que ainda não morreram. Isto faria aumentar a taxa.
  2. O atual grupo de infectados pode não ser representativo do total da população. Por exemplo se a camada da população mais em risco (como os idosos) tiver em média adotado atitudes mais protetivas de exposição ao vírus (ficaram mais em casa, distanciaram-se mais, etc) então os 0.78% seria uma subestimação do verdadeiro número. Se estiveram mais expostos do que a média seria o contrário.
  3. Pode ter havido problemas de aleatoriedade na amostra recolhida, devido ao método de selecionar os participantes, que mais uma vez pode ser enviesado para um grupo de população mais ou menos infectado.
  4. O teste serológico realizado não é perfeito, e pode não detectar os anticorpos de algumas pessoas, e nesse caso o número real de infectados seria maior e a taxa de mortalidade menor.

Finalmente, temos de notar que o estado de Nova Iorque é um dos mais jovens e menos obesos, do EUA. É provável que tenha também melhor infra-estrutura médica do que a maioria de outros estados mais rurais nos EUA. Estes fatores indicam que não está de forma nenhuma excluída a possibilidade de que a taxa de mortalidade possa ultrapassar os 1% noutras zonas dos EUA e do mundo, dependendo da demografia, estado de saúde da população e da qualidade do sistema de saúde de cada região.

Portanto, se considerarmos que a taxa de mortalidade da gripe comum for de 0.1% (e há quem diga que possa ser menor), não está de forma nenhuma excluído que a taxa de mortalidade por covi-19 não seja 10 vezes superior, e já é quase estatisticamente impossível que não seja pelo menos 4-5 vezes superior, pelo menos para o caso do estado de Nova Iorque.

Outra perspectiva, um pouco menos fiável pois a amostra é muito pequena, é o caso da Islândia onde a “case fatality rate” (a 27 de Abril) é de 0.58%, e como o denominador está controlado, mas o numerador pode aumentar, pois ainda há alguns casos críticos, poderia ser uma indicação que não baixará desse número (assumindo que o facto de terem testado 13% da população — mais do que qualquer outro país no mundo — teria captado a esmagadora maioria dos infectados — mas obviamente que há incerteza quanto a isso).

 

Os casos de Singapura e Qatar, os únicos países com “Case Fatality Rate” (na tabela de 27 de Abril) com uma taxa de aproximadamente 0.1% são casos onde obviamente o número está grosseiramente subestimado, pois ambos estão a passar por uma segunda vaga recente, muito superior à primeira. Portanto, o numerador por enquanto ainda só inclui as mortes finais da primeira vaga, mas no denominador já estão incluídos os infectados na segunda vaga, que foi muito maior. Gerando um artefacto temporário no rácio, tão grande quanto a diferença de volume nos infectados entre a primeira e segunda vaga (que pode ser 10-20 vezes superior).

Outros erros claros de André Dias (lista não exaustiva)

Afirmação de A.D.: “O que interessa é saber quantos vão morrer”

De certo modo sim, mas como a taxa de mortalidade pela infecção também depende da disponibilidade e qualidade do tratamento médico, a distribuição temporal das mortes é muito importante. Se todas as infecções ocorrem num curto espaço de tempo, a infraestrutura de saúde e ordem pública é muito mais afectada e iria ter como efeito secundário o aumento do valor absoluto de mortes (daí a popularidade da estratégia “flatten the curve”).

Para além disso, mesmo entre os sobreviventes, ainda não sabemos bem que mazelas físicas e psicológicas possam persistir a longo prazo. Há ainda muita incerteza e estamos aprender coisas novas sobre os efeitos do vírus todas as semanas, e daí o princípio da precaução fazer sentido.

Afirmação de A.D.: “…a gripe Suína começou com estimativas de 30% — literalmente extinção humana em poucos meses — e acabou abaixo de 1%, abaixo da gripe sazonal e não fez dano nenhum.”

Por definição, uma taxa de mortalidade de 30% significa que se todos no mundo fossem infectados que 30% morreriam e que 70% ficariam vivos. Isso não é “literalmente extinção”.

A Humanidade foi afectada durante séculos por epidemias gravíssimas, incluindo a varíola (que tinha taxas de mortalidade dessa ordem: 20%-30%) e não se deu uma “extinção” da raça humana.

Para além disso a direção descendente da estimativa da taxa de mortalidade (totalmente previsível pelo que discutimos anteriormente) não é razão para dizer que vai convergir para valores tão baixos como o da gripe comum. Pode convergir para valores ainda assim 5 ou 10 vezes superiores.

Afirmação de A.D.: “isto desaparece naturalmente com a radiação solar na Primavera e Verão”.

Embora seja verdade que os vírus presentes numa superfície sejam destruídos pela radiação solar forte, não é ainda nada claro que isso seja suficiente para diminuir significativamente a propagação do SARS-COV-2. Os dados parecem apontar inequivocamente para o contrário: senão porque é que estamos agora (final de Abril) a ver um crescimento muito rápido dos casos ativos em países do hemisfério Norte, como a Rússia, Turquia, etc? O mesmo também está a acontecer em países tropicais como o Equador, ou no Brasil onde embora seja início do Outono, ainda têm temperaturas elevadas e muita radiação solar.

Afirmação de A.D.: “o confinamento ainda causa mais propagação”

Esta afirmação baseia-se no argumento de que “se já houver 15% de infectados, basicamente há quase uma pessoa por casa e depois contamina os outros membros da família”.

Só nos piores países, nas estimativas piores, terão já sido contaminados 15%-20%. E mesmo assim não seriam nada uniformemente distribuídos. Ou seja, famílias onde haja infetados, com ou sem confinamento, vão infectar o resto da família, enquanto que as famílias sem ninguém infectado vão ser protegidas pelo confinamento ou distanciamento social, mas seriam infectadas se não houvesse intervenção.

Afirmação de A.D.: “a média de idades dos mortos é quase superior à esperança média de vida no país, e portanto são mortes que “deveriam” ter acontecido antes se não tivessem sido poupadas por haver menos gripe nos últimos dois anos.”

Primeiro comentário técnico: a esperança média de vida num país é calculada com um método matemático relativamente complexo, que faz uma média pesada das esperanças de vida para as pessoas com idade x, usando um “cohort” imaginário da demografia do país. Portanto a comparação direta com a média de idades dos mortos por covid-19 é comparar alhos com bugalhos. Tal comparação deveria ser feita com a média de idades dos mortos no ano passado, por exemplo. (Nota: infelizmente tenha tido dificuldade em encontrar dados precisos sobre isto, para diferente países, mas seria interessante).

Embora seja plausível (talvez provável) que o número de pessoas em condições vulneráveis seja estatisticamente superior ao que seria esperado se as épocas de gripe anteriores tivessem sido mais fortes, este argumento é simplista e os picos de mortalidade enormes não podem ser justificados unicamente por esse facto (ver discussão sobre a taxa de mortalidade elevada e a falta de imunidade da população).

É também verdade que o vírus parece estar a matar sobretudo gente mais idosa e/ou já com outras doenças graves, o que seria irrelevante numa perspetiva ética em que cada vida tem igual valor, mas será muito boa notícia para uma perspetiva ética alternativa, em que se leva em conta para cada morte, qual seria a esperança de vida restante e quão debilitada essa vida seria por problemas de saúde pré-existentes (obviamente muito difícil de estimar para as vítimas de covid-19 — e mesmo isso seria uma atitude simplista). Há no entanto um esforço para criar uma métrica que capta estes “trade-offs” entre vidas, muito útil para definir quais são as entidades de caridade com mais impacto, chamada “Disability-Adjusted Life Year (DALY)”.

Afirmação de A.D. : “não confio no artigo do Imperial, por confiar num argumento de autoridade indireta de Bill Gates, que é informado pela sua fundação, que é altamente credível.”

Havendo falta de informação, e na ausência de alternativas melhores, uma heurística razoável pode ser confiar na opinião de entidades que consideramos à partida altamente credíveis. Aqui André Dias, argumenta que a credibilidade de o grupo do Imperial neste caso do covid-19 é baixa, pois até a fundação de Bill Gates (altamente credível) disse que o modelo pode ter exagerado nas previsões do número de mortes. Mas então, porque é que o mesmo Bill Gates, informado pela mesma fundação, deixa depois de ser uma fonte credível quando todas as suas recomendações, altamente públicas, alertando para a gravidade da situação e recomendando “lockdowns” sérios e prolongados nas zonas mais afectadas que reagiram tarde demais (ex: EUA), contrariam totalmente todos os argumentos e afirmações centrais de André Dias?

Para além disso, dizer que o modelo do Imperial poderá ter exagerado, e dizer que este é “lixo”, é completamente diferente, pois poderá ter exagerado por um factor suficientemente baixo, de forma a que o nível de alerta e reação necessários não se alterassem significativamente (que parece ser a opinião pública de Bill Gates).

Afirmação de A.D.: “pandemias pulmonares nunca são muito perigosas”

Falsidade cientifica e negacionismo histórico.

Basta olhar para a gripe Espanhola de 1918 onde se estima que “infectou 500 milhões de pessoas, cerca de um quarto da população mundial na época e (..) que o número de mortos esteja entre 17 milhões a 50 milhões”.

Do ponto de vista básico de epidemiologia, se definirmos quão perigoso um vírus é por duas componentes: velocidade de contágio e taxa de mortalidade, os vírus respiratórios podem ser perigosíssimos. Embora haja uma certa tensão entre as duas dimensões (pois se for extremamente letal é mais difícil propagar-se rapidamente, pois mata os portadores antes de terem tempo de infectar muitos outros), há exemplos de vírus respiratórios muito letais (SARS; MERS, etc.) e vírus respiratórios de propagação muito rápida (notavelmente este SARS-CoV-2), e potencialmente ambas as dimensões de perigosidade podem estar presentes. No caso, do SARS-CoV-2, os últimos dados indicam que a mortalidade será de pelo menos 5x superior à gripe comum, e de que se propaga extremamente rápido através de gotículas e aerossóis, e pelo facto de a população não ter imunidade inicial nenhuma, nem existir vacina.

Conclusão

Lamento profundamente que um cientista Português esteja a contribuir para a desinformação da população. É realmente muito triste que alguém, que tendo obrigação de fazer melhor, venha falar dum assunto com tanto impacto potencial negativo, argumentando com tanta confiança e estando tão errado, por razões tão elementares.

O pior erro de “forecasting” é fazer uma afirmação com alta confiança de que se está certo, mas na realidade estar errado. A pior atitude ética é fazer recomendações sobre políticas que possam matar imensas pessoas, estando pouco exposto a resultados negativos graves (falta de “skin in the game”).

Evitei dar as minhas opiniões quanto à gestão da pandemia, em diferentes países, e espero obviamente como todos, que possamos ir retomando uma certa “normalidade” progressiva nas nossas vidas, que consigamos manter o número de mortes o mais baixo possível, ao mesmo tempo que retomamos a atividade produtiva, de modo a evitar uma série de outros problemas secundários. Essa opinião é quase “banal” e unânime. Mas é muito diferente de argumentar, sem fundamentos, que se tem confiança elevadíssima de que a taxa de mortalidade por covid-19 é baixa e de que as medidas de contenção são inúteis. A isso chama-se incompetência e irresponsabilidade graves.

Autor: Hugo Penedones

Úlitma atualização: 28 de Abril de 2020

Data de primeira publicação: 28 de Abril 2020